Quinta-feira, 26 de Março de 2009

CONDIÇÃO MILITAR E MENTALIDADE - III

 

         O moderno Estado democrático - sociedade perfeita, politicamente organizada – atribui limitações à profissão militar, que considera com carácter técnico e com competência limitada, baseada numa ampla divisão do trabalho. Huntington refere que antes da profissionalização dos militares a mesma pessoa podia qualificar-se também como político, mas tal já não é corrente, citando a propósito o marechal Wavell: “A permutabilidade entre o estadista e o soldado é coisa que passou com o século XIX”. E defende que a política está para além da competência militar, pondo em relevo que “a participação dos militares na política enfraquece-lhes o profissionalismo, reduz a competência profissional, divide a profissão contra si mesma e substitui valores profissionais por valores estranhos. Politicamente, o militar tem é que permanecer neutro. (…) Assim como a guerra serve aos fins da política, a profissão militar serve aos fins do Estado.”
          Nesta visão, a responsabilidade dos militares para com o Estado assume três aspectos: uma função representativa, uma função consultiva e uma função executiva. Ressalva-se uma grande área de justaposição entre a estratégia militar e a arte do possível exercida pelos políticos. Uma vez que a profissão militar existe para servir o Estado, os militares profissionais devem constituir um instrumento da política do Estado, o que implica que a profissão se estruture numa hierarquia de obediência leal e instantânea a todos os níveis. Daqui resulta que “lealdade e obediência são as virtudes militares mais altas”. Um corpo de militares “só é profissional na medida em que a sua lealdade se dirige ao ideal militar. Outras lealdades são transitórias e divisoras.”
         Huntington discorre seguidamente sobre os limites à obediência, questionáveis quando surja um conflito, de natureza operacional ou doutrinária, entre obediência militar e competência profissional; ou entre obediência militar e valores não militares.
         No primeiro caso, considera as possibilidades de ruptura da organização militar originada por desobediência a ordens operacionais e de a obediência rígida e inflexível sufocar a inovação e o espírito empreendedor. Trata-se de situações muito complexas. De qualquer modo, “Presume-se que a autoridade de militares superiores reflicta maior capacidade profissional. Quando esse não é o caso, a hierarquia de comando está sendo prostituída.”  
         No segundo caso, divide as questões em quatro grupos de conflitos possíveis: entre obediência militar e sabedoria política, clarificando que a política é uma arte enquanto a ciência militar é uma profissão; entre obediência e competência militares, quando esta competência se vê ameaçada e invadida por um superior político, que pode dar uma ordem militarmente questionável; entre obediência militar e legalidade, presumindo-se que os militares só acatam ordens de governantes legitimamente constituídos e que, julgada a questão, o militar está obrigado a acatar a decisão; entre obediência militar e moralidade, esta por vezes ultrapassada pela razão de Estado, embora não renunciando o soldado a fazer julgamentos morais, considera que “Só raramente encontra o militar justificativa em seguir os ditames da própria consciência contra a dupla demanda de obediência militar e bem-estar do Estado.”
         Huntington, em termos sumários, considera que a ética militar “Proclama a supremacia da sociedade sobre o indivíduo e a importância da ordem, da hierarquia e da divisão de funções. (…) Exalta a obediência como a maior das virtudes do militar. ”  
         Encarando a precedente visão institucionalista de Huntington como básica e facilitadora para desenhar um modelo da mentalidade militar, convém lembrar que este autor publicou tais considerações em 1957 e originou polémica com a abordagem funcionalista de Morris Janowitz; tais visões foram complementadas posteriormente por outras abordagens.
sinto-me: Esclarecido
publicado por Zé Guita às 11:28
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Domingo, 22 de Março de 2009

CONDIÇÃO MILITAR E MENTALIDADE - II

 

         A prevalência da profissão militar baseia-se na eterna existência de interesses humanos em conflito e pressupõe a eventualidade de emprego da força para defesa desses interesses. O facto de a mudança acelerada implicar novas formas de exercer a violência bélica e procurar recorrer cada vez mais a meios pacíficos para resolução de conflitos não elimina a circunstância do recurso às armas como fenómeno permanente. Acompanhando Adriano Moreira, aqui se encontra justificação para considerar que as forças militares, ainda que de nova invenção, continuam indispensáveis.
         Samuel Huntington coloca em destaque o facto de a ética militar ter em consideração que conflitos e violência têm profundas raízes na natureza biológica e psicológica do ser humano; refere a imagem essencial do homem de Hobbes e cita Clausewitz – “A guerra é a província da incerteza”; clarifica ao afirmar que a profissão militar é organizada e disciplinada pelos Estados em competição, acontecendo que os militares enfatizam a importância do grupo contra o individualismo; e defende que a ética militar é essencialmente antiindividualista e de espírito basicamente corporativista.
         Sobre a visão dos militares profissionais relativa a uma política nacional, Huntington postula que estes consideram o Estado como a unidade básica da organização política; salientam a natureza contínua e a magnitude das ameaças à segurança militar do Estado; são favoráveis à manutenção de forças militares fortes em prontidão; e resistem a envolvimentos bélicos precipitados, razão pela qual os mesmos militares contribuem para formular a política do Estado – exclusiva do poder político - com “uma voz cautelosa, conservadora e restringente”. “A tendência do político civil é cortejar as boas graças do público através de cortes orçamentais no sector dos armamentos, ao mesmo tempo que preconiza uma política externa aventurosa. O militar opõe-se a ambas essas tendências, pois a ética militar traça uma nítida distinção entre poder armado e belicosidade, entre Estado militar e Estado guerreiro. O primeiro corporifica as virtudes militares do poder ordenado: disciplina, hierarquia, contenção e firmeza. O segundo caracteriza-se por euforia e entusiasmo descontrolados e irresponsáveis e também pelo amor à violência, à glória e à aventura. (…) Para o militar profissional (…) este tipo de mentalidade tem poucos atractivos.”
        
publicado por Zé Guita às 08:11
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Sábado, 14 de Março de 2009

CONDIÇÃO MILITAR E MENTALIDADE

          A vivência dos homens e das mulheres que integram a GNR sujeitos à condição militar não se limita a ser regida pelas correspondentes normas legais. A Guarda, corpo militar de polícia, é uma instituição com mais de dois séculos e como tal tem uma cultura organizacional própria, muito marcada  por aquilo que pode ser  designado como "mentalidade militar", no sentido de estado de espírito, maneira individual de pensar e de julgar. 

           Samuel Huntigton, o eminente autor  de "O Choque de Civilizações", há pouco falecido e cuja memória merece homenagem, legou-nos também uma obra fundamental da sociologia militar intitulada "O Soldado e o Estado - Teoria e Política das Relações entre Civis e Militares" Tratando-se de uma abordagem institucionalista, datada de 1957 e que veio a ser polemizada  com Morris Janowitz, é perfeitamente utilizável para permitir uma melhor  compreensão da referida mentalidade militar. 

            Huntington refere três pontos de vista utilizáveis para examinar tal mentalidade:

- O primeiro centra-se na sua capacidade ou qualidade, que é por vezes considerada como medíocre. Tal abordagem não ajuda a definir os aspectos especificamente militares, nada dizendo sobre as suas características próprias.

-  A  segunda abordagem foca os seus atributos ou características, destacando a disciplina rígida e não sendo flexível, tolerante, intuitiva nem emocional. Tal caracterização, aparentemente verdadeira, carece de melhor conhecimento sobre a personalidade dos militares e de outros grupos, e também sobre a relação desta com valores e comportamentos sociais, não sendo de grande utilidade.

- O terceiro ponto de vista, baseado nas atitudes, tem optado por analisar os valores predominantes ou, em alternativa, definir os valores militares pela fonte, admitindo que os valores dela oriundos reflectem a mentalidade militar. Esta proposta, sendo mais frutífera, apresenta no entanto a dificuldade factual de nem tudo o que vem de fonte militar derivar obrigatoriamente do seu carácter militar, pois este convive com origens sociais, económicas, políticas, religiosas... Tal caminho implica trabalhos de grande vulto, favorecendo a definição da mentalidade militar como uma ética profissional.

           "As pessoas que agem da mesma forma  durante um largo período de tempo tendem a desenvolver hábitos característicos e persistentes de pensamento. A singular relação que elas mantêm com o mundo dá-lhes uma peculiar perspectiva desse mundo, levando-as a racionalizar o próprio comportamento e o próprio papel.  (...)  Uma profissão é mais estritamente definida, mais intensa e exclusivamente procurada e mais claramente isolada de outras actividades humanas do que o é a maioria das ocupações. (...) Nesse sentido, a mentalidade militar consiste nos valores, atitudes e perspectivas inerentes ao desempenho da função militar e que se deduzem da natureza dessa função."

          A mentalidade militar é, portanto, abstractamente definida como um tipo-ideal. Os militares profissionais sentir-se-ão ligados á ética na medida em que ela seja profissional, mais moldada por imperativos funcionais do que por padrões sociais exteriores.

 

 

 . ,  

publicado por Zé Guita às 07:17
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Terça-feira, 10 de Março de 2009

CONDIÇÃO MILITAR E PROFISSÃO

 

 
            Na presente conjuntura e tendo em conta a sua evolução, convém recordar conceitos já antes adoptados – profissão, profissionalismo, profissionalização – e parece útil insistir na clarificação da profissão militar. Neste sentido, apresenta-se como indicado recuperar a visão institucionalista da grande figura que foi Samuel P. Huntington, no seu livro fundamental para a sociologia militar “O SOLDADO E O ESTADO – Teoria e Política das Relações entre Civis e Militares”.
           Para este autor, uma profissão consiste no exercício de uma função com características altamente especializadas. Acontece que tal caracterização marca o oficial militar do mesmo modo que o médico, o engenheiro ou o advogado e vem distinguir modernamente o militar profissional dos guerreiros do passado.
            No entanto, nem sempre as opiniões do grande público bem como das elites vão neste sentido. “Quando a palavra ‘profissional’ é usada em relação aos militares normalmente é no sentido de ‘profissional’ em contraste com ‘amador’, e não no sentido de ‘profissão’ em comparação com ‘ofício’ ou ‘habilidade’. As expressões ‘exército profissional’ e ‘soldado profissional’ costumam encobrir a diferença entre o soldado de carreira, que é profissional no sentido de uma pessoa que trabalha por ganhos monetários, e o oficial de carreira, que é profissional num sentido muito diferente, aquele que segue uma ‘vocação mais alta’ ao serviço da sociedade.”
           Nesta visão, as características que definem uma profissão como um tipo de vocação são as seguintes:
- Especialização, que se adquire por educação e experiência prolongada, envolvendo conhecimento intelectual, preservado pela escrita, e a existência de instituições de pesquisa e educação;
- Responsabilidade, de carácter técnico, prestando serviço essencial e geral ao funcionamento da sociedade, com a obrigação de prestar tal serviço quando exigido;
- Corporativismo, assumindo atitude e comportamento individual e grupal de unidade orgânica, não assumíveis por leigos, baseados na disciplina, no treino, no vínculo comum e na solidariedade, estabelecendo padrões de competência e vivendo um código de ética.
            Sobre a profissão militar, Huntington, em 1957, elege ‘o oficial’ como paradigma profissional (a aplicação do termo ‘oficial’ é, actualmente, discutível). Integra na especialização militar a ‘administração da violência’  e não o exercício da violência em si; atribui ao militar profissional a responsabilidade social de garantir a segurança do Estado; quanto ao corporativismo, assenta numa profissão pública, rigorosamente definida e organizada, sendo porém ‘muito mais do que uma simples criatura do Estado’. 
publicado por Zé Guita às 11:43
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